segunda-feira, março 28, 2005

Manda quem pode

O direito de mandar adquire-se em democracia e ao ser sufragado torma-se um dever. É ao governo que cabe decidir sobre variadas matérias, com mais ou menos intervenção da Assembleia da República, onde não raro, sobre as propostas do governo, se travam sonolentos diálogos de surdos. Resta, para prevalecer a tese do governo, o parecer do Presidente da República sobre a constitucionalidade da Lei.
Frequeentei um curso de formação sobre a Constituição, apoiado em fundos estruturais europeus, ou lá como isso se chamava, e saí dele com um pomposo diploma, atestando simplesmente a frequência. Como desde o princípio (foi um curso longo, longo, durou dois dias, um atrás do outro) não achei piada, nem à matéria, nem ao constitucionalista e passei o tempo a levantar reservas e a revelar claro cepticismo. Ganhei o rótulo de esquerdista o que, isso sim, me divertiu imenso. E isto para ter de reconhecer que tenho pouco jeito para citar a Constituição ou para fazer dela um auto de fé. Por exemplo, nem sei se a questão do aborto é ou não um dogma constitucional. Dava-me jeito que não, mas se for que se lixe!
Um grupo de artistas comentadores discutiu, num canal de televisão, o assunto e alguns não disfarçaram o mal estar que a posição da Igreja lhes transmitia. De repente viam o referendo em risco. A hipótese do não se sobrepor é, de facto, asustadora, mas seja como for, as regras do jogo são essas: ganha quem tem mais votos, perde a razão.
Estou em crer que este é o lado errado. Não é tema de religião. É matéria de intervenção política(de governação) porque interfere com direitos e liberdades dos cidadãos, que não podem nem devem estar sujeitos a dogmas, seja lá isso o que for, religiosos; e científica, pelos efeitos que exerce sobre a saúde física e psicológica.
É ao governo que cabe decidir sobre o peso dos impostos que o cidadão deve pagar (ou ficar a dever) sobre se os pópós podem ou não estacionar nos passeios. Sim, senhor, é ao governo que compete definir quem é que pode soprar em apitos dourados (e quem não pode!), é o governo que deve fixar as propinas e deve também ensinar o caminho do futuro, assegurando um presente digno. A Igreja é outra coisa e por muito respeito que possa merecer é um pouco como a TV Cabo -- serve para os tempos livres e só lá vai quem quiser. Pode pregar a fraternidade e a castidade (sobre isso Eça já disse o bastante!); pode abençoar os baptizados, abrilhantar os casamentos e ajudar os vivos a chorar os mortos. Mas não se pode, nem deve, permitir a qualquer culto entrar na cama das pessoas, na vida íntima dos crentes ou limitar o livre arbítrio.
E não é só o governo que tem de entender isto, é também, e sobretudo, a Igreja: façam do culto uma festa, não um trauma.

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