sexta-feira, maio 26, 2006

DIREITOS E LIBERDADES

Nem é sequer a propósito do livro do esposo da esposa e menos ainda do esperançoso treinador das esperanças perdidas. É simplesmente a propósito de direitos e de liberdades. Ocorreu-me que a filha de madame Curie, que também teve o seu prémio Nobel, foi juntamente com duas outras senhoras, titular de uma pasta ministerial. Integrou o governo, se a memória não me trai, de Leon-Blum. No entanto as senhoras puderam pertencer ao governo, por acaso de esquerda, mas não podiam votar: não tinham direito. Esse direito, creio eu, viria a ser concedido por De Gaule, já depois da segunda guerra mundial.
A liberdade de escolha é suposta ser também um direito, mas não garanto. Um cidadão, desde que se disponha a pagar o preço, pode matar o próximo. É livre de o fazer com violência ou com piedosa suavidade. Pode violentar criancinhas ou idosos, trucidar deficientes, com requintes de malvadez. Alguns, que eu sei, mataram a própria mãe ou optaram por desfazer-se do presumível pai. Podem beber demais e conduzir na broa.
Seja qual for o crime livremente escolhido, a sua prática concede-lhe o direito a julgamento
justo. O Estado deve propiciar-lhe cama, mesa e roupa lavada a que tem direito. Manda o humanismo que se disponha de televisão no refeitório; que se possa assistir ao mundial de futebol.
Que direitos tem uma vítima? Funeral decente? Missa do sétimo dia? Como se compensa uma mãe a quem mataram um filho?
É proíbido fumar? Não! Claro que não! Pode-se fumar desde que não se incomode o próximo. Mas o tabaco mata, faz mal à saúde, de quem fuma e de quantos se abeiram do fumador ou quando o fumador se abeira deles. O que faz mal é o tabaco. Mas o tabaco continua a fazer-se e a vender-se. Como a velocidade: não se pode conduzir a mais de 120, mas os carros vêm de fábrica mais possantes e matam mais depressa que o tabaco, mais depressa que o alcool.
Quando um governo quer mais farmácias e menos maternidades está a exercer um direito: o direito de lixar a vida aos cidadãos: Por haver mais farmácias não haverá mais doentes, nem se vão vender mais remédios. No antigamente, que bem me lembro, as mães tinham os filhos em casa e tratavam de interromper os descuidos no alojamento das parteiras. Não se trata de pregar moral: era assim. Deixou de ser. Agora também. Ir a Espanha ter filhos não é nada de outro mundo, já para lá se patinhou por razões inversas. As coisas são como são: os governos
governam com a legitimidade que lhes é devida e os cidadãos são livres de pagar as consequências...
Nem era de consequências que desejava tratar. Quantas vezes na melhor das intenções se dizem inconveniêncis? Não é por causa das selecções perderem que o futebol deixa de andar para a frente. Para a frente do Benfica vem o Rui Costa e ninguém perguntou a Pinto da Costa se ele ficou satisfeito. Os clubes são livres de ficar a dever e é manifesto que têm o direito de não pagar seja qual for a cor do apito. Um Benfica forte é o que se quer. O Rui já cá está e amanhã vão ficar a saber do melhor: com vista ao futuro os dirigentes encarnados não olham a sacrifícios e vão anunciar a contratação dos esperançosos Costacurta e Maldini para a defesa, porque a defesa é o melhor ataquer.
Liberdade não é só matar ou estropiar é também o direito a ser enganado, enquanto sonha alto.
Como se pode pensar em crianças ou no bem estar delas se os adultos são o que são? Se a Justiça é o que é? Se as coisas são o que são? Se os valores valem o que valem e cada vez valem menos?
Fico por aqui. É um direito que me assiste...

domingo, maio 21, 2006

Um "Presunto" na Carreira da Loira da Rua 48

O homem começou a ficar pálido, verde, e a escorregar sobre uma senhora gorda que já não devia sentir mão de homem há um par de anos.
- " oh! senhor!!! está a meter-se comigo???
Não sabia se fugir ou se o puxar (falta de treino...)
E o senhor, de fato cincento, gravata encarnada, de pasta de executivo, espalhou-se pelo chão, de olhos arregalados e brancos... sem cor, desfalecido, braços sem força, a abanar.
"pahh" - a pasta despencou no soalho do autocarro da Carris atolhado de gente.
Gente que transpirava, suspirava e apenas uma entre tantas gritava:
- " Mas, afinal o que é isto, o meu passe diz que tenho direito a lugar sentado e com ar condicionado.-.. oh! senhor motorista, ligue lá essa porcaria que ainda morre p'ra aqui alguém!"
" Shhhlaapp". Homem ao chão.
Um alvoroço.
- "oh! senhor motorista, pare lá a carroça e chame um ambulância que está aqui um sujeito esticado..."
- " Isso passa" - diz o motorista, naquele jeito que todas as autoridades têm sobre todas as matérias, mesmo as que não lhes dizem respeito.
- "Qual passa, qual carapuça..." levantou-se uma voz que todo o autocarro conhecia. Era a loira da Rua 48 a comandar a rebelião da carreira da Carris.
- "faça o favor de parar já essa traquitana, ligar o ar condicionado e telefonar a pedir uma ambulância. Está aqui um cidadão esticado, que desmaiou, seguramente por causa do calor que aqui faz dentro e pela falta de circulação de ar puro que vocês já nos negam para pouparem uns míseros tostões no combustível destas carroças..."
O motorista parou o autocarro (ou seria uma camioneta, ou um machimbombo?) e telefonou para a central:
- " Oh! colega, estou aqui com um problema, tenho um passageiro no chão, parece desmaiado, acho melhor chamar uma ambulância..."
E, do outro lado:
- "oh! colega! isso é uma carga de trabalhos... abanem o homem que isso passa.... a gente liga para a ambulância e fazem-nos um monte de perguntas..."
Enquanto isso, alguns dos circunstantes propuseram-se ajudar o cavalheiro estatelado, pediram lugar para o sentar, abanaram-no e perguntavam-lhe coisas.
- " para onde é que o senhor vai...?"
- "será que tomou o pequeno almoço...?"
- "É melhor deixar o senhor aqui perto daquele posto clínico. Alguém pode ir lá com ele. Rápido, rápido..." dizia a Loira da Rua 48, que tinha reconhecido, naquele homem, com ar de executivo, um dos habitantes da sua rua.
- "Vá, senhor motorista, andando, andando... será que vocês não têm normas de execução para casos de emergência como estes? Que raio de companhia é esta que transporta milhões de pessoas, entregues a gente que acha que o ar condicionado dos autocarros só deve ser ligado quando eles próprios se sentem incomodados...?
A Loira protestou e o resto do pessoal assentiu (só com a cabeça - os portugueses estão a ficar mudos).
O senhor executivo, todavia, conseguiu, entretanto, recuperar do que parecia ter sido uma quebra de tensão, desceu do autocarro e pegou num telefone portátil. Os passageiros, que ficaram a olhar para trás perceberam que ele não falava e ficaram com a sensação de que não sabia, sequer, onde estava.
Continuou a viagem e, de repente, ouve-se o motorista, que, entretanto, tinha parado o autocarro (ou seria uma camioneta, ou um machimbombo?) no meio da estrada e estava a perguntar ao interlocutor do outro lado da linha: "mas, ouve lá, achas que aquele cinquecento vale alguma coisa...?
Foi preciso, de novo, a intervenção da Loira da Rua 48:
- " Mas, então o que vem a ser isto?... agora temos que estar aqui à espera que o sr. motorista feche o negócio do cinquecento?...não pode esperar por mais logo, quando não tiver a obrigação de conduzir esta gente aos seus destinos..."
O homem desligou o telefone, mas, entre dentes, sempre foi murmurando qualquer coisa contra aquela loira que lhe apoquentava quase todas as viagens daquelea hora da manhã.
Hoje, fim da tarde, estava a Loira a comentar o incidente com a sua amiga de todas as manhãs, quando, correndo e com ar bem disposto, com um saco de desporto ao ombro, apareceu ao cimo da Rua 48 o tal "presunto da carreira".
- "O homem deve andar a fazer exercício demais..." comentou a Loira

sexta-feira, maio 19, 2006

MACAQUICES

Placidamente sentado num banco do hall do aeroporto, esperava duas amigas, que chegavam de França. Já tinha folheado o jornal duas vezes e bocejado umas quatorze (será assim que se escreve?) ou quinze vezes,quando notei (hoje quero crer que tenha sido pelo olfato) uma cientificidade sobre relações presumíveis entre humanos e chimpanzés, na pag. trinta e uns trocados. O tom era o que vai sendo moda: sugerir um pecaminoso atentado ao pudor. A começar pelo título: chimpanzés e humanos fizeram sexo. Como são tendenciosos (jornais e jornalistas) não mencionam qual dos sexos fez sexo com o outro sexo. E evoquei algumas revelações sobre pastores, que sofriam com a solidão e abusavam (aproveitavam?) das ovelhas e ocorreu-me pelo menos um caso de jovem que ganhou o gosto pelas galinhas. Mas também vi, na fase de ver cine-porno, umas senhoras desembaraçadas mesmo com cães!
Quando amigas, finalmente se soltaram da zona restrita, alem das malas vinham cheias de jornais. Uma trazia o «humanité», o «figaro» e o «canard»; a outra o «le monde» e o «liberation». Foi a primeira página do último que me fascinou:O caso dos chimpanzés com fulanos de tal inundava a primeira página e tinha um tom sério. Dormi mais tranquilo. Vinha sendo, há uns anos, alvo do furor da patroa pelo vício que adquiri de remexer no interior do nariz. Afinal nem é nervosismo nem falta de higiene: é genético, gaita! É genético! Já não preciso de ter vergonha e já não iria a tempo de renegar os ancestrais. O Le Monde puxava pelo corvo, o denunciante anónimo, que o deixava de ser. Cheira-me a arranjo e façam o favor de respeitar o meu olfato, tem raízes! Com um culpado próximo do primeiro-ministro é o presidente que se livra. De onde diabo lhe vem aquele jeito dos saltinhos?

segunda-feira, maio 15, 2006

QUEM FEIO AMA

Melhor dizendo: se és bom junta-te aos maus, que é deles o reino. Comprei a revista para me regalar com os desenvolvimentos do escândalo que envolve o presidente francês e o seu (dele)
primeiro-ministro, a senhora dos Negócios Estrangeiros e o artista do Interior. Mas caí, por acaso, num artigo delicioso, que nem chamada tinha na primeira página, sobre a Fifa. Um book sobre os personagens da organização, acabado de sair em Londres, com autoria do jornalista britânico Andrew Jennings. O livro é demolidor e revela uma porção de escândalos. Tem todo o ar de ser um ajuste de contas. Não é exactamente um texto crítico sobre o organismo que tutela o mundo do futebol ou sobre a actuação dos seus dirigentes, mas a denúncia de quem efectivamente controla, e porquê, a instituição.
Tudo terá começado por um tal Dassler, patrão da Adidas, que soube ganhar influência dentro, foi ganhando espaço, controlando cada vez mais os dirigentes do mundo do desporto, que cada vez mais recorriam à sua influência para subir no escalão do dirigismo. Para evitar algumas resistências decidiu designar o presidente. Nem houve problema para substituir João Havelange, designado presidente honorário, com salário convenientemente elevado.
O escolhido já se sabe quem foi: um tal (e que tal!) Seep Blater. Não sei se se lambram dele. Serviu no Sporting, no tempo do despachante. Contratado para projectar o clube de Alavalade nas altas instâncias futeboleiras, mas ocorreram alguns azares, sobretudo na regularidade com os vencimentos. Blater acabou por zarpar e ameaçar os lagartos com a Fifa se não pusessem as contas em dia. O despachante, ele próprio, teve de se despachar e abalou para Angola e Seep acabou, como se viu, por ascender na vida. E que vida! O ordenado é imenso, ao nível de qualquer sultão petrolífero. Despesas de viagens e estadias e festarolas são todas pagas pela Fifa, que ainda agracia o viandante com 500 dólares por dia! o ilustre presidente pode fazer-se acompanhar, e é conhecida uma vasta lista de jovens senhoras interessantes, por quem bem entenda que deve viajar com ele, ou mesmo sem ele, por esse mundo fora. Jennings conta tudo. Não faço ideia se o livro já terá ou não sido comentado na imprensa portuguesa. Nos jornais parisienses não vi nada. Mas não li todos e não li, admito nenhum dos desportivos. O que se descreve e comenta é verdadeiramente escandaloso e pode, eventualmente por em causa o organismo que explora, no sentido literal do termo, o mundo do futebol. Presumindo que os dirigentes das federações não sejam do género de dormir na forma pode concluir-se que também eles devem exorbitar nos consumos. Pelo menos podem tornar-se suspeitos. A nível de clubes a transparência é a que se conhece. Não estou a ver qual dos nossos presidentes clubeiros se pode dar ao luxo de ir à Suiça atirar pedras a Seep Blater.
Em todo o caso acho que deviam ler o livro. Não para aprender, nem invejar, mas para ponderar.
Se quiserem homenagear o homem com uma estátua, façam-no. E dêem vivas! Se forem capazes de dizer basta, talvez o futuro lhes faça justiça...
Mas a avaliar que que se passa na Itália, andar com garotas bonitonas talvez seja um mal menor
e bem mais suave que arrancar dentes...

sábado, maio 13, 2006

RUMOR E CALÚNIA

É como a água benta: cada qual toma a que quer. Fui de viagem, de carro, até Paris. Até sair não tinha dado pelo escândalo na alta política francesa. A autovia de Salamanca vem vindo até nós com agradável persistência. Já vem até Ciudad Rodrigo. Por isso, cada vez se chega mais cedo a
St. Jean de Luz, para jantar e ficar até à manhã seguinte.
Foi então que comecei entrever os contornos do escândalo político do momento. É uma intriga que deixa Fátima Felgueiras a perder de vista, que faz de Ferreira Torres um pobre de Cristo. Pia mais fino!
Mas nem por isso constitui novidade. De há muito que Chirac vem sendo denunciado por financiamento do partido com fundos públicos, aquando presidente da Câmara de Paris. A condição de presidente da França permite-lhe manter-se à distância, mas não sem que, de vez em quando, tenha de haver carne para canhão. Mais recentemente, em 2000 a Justiça confirmava a «irresponsabilidade penal» de Chirac,a propósito justamente de irregularidades cometidas no município parisiense e condenou Alain Juppé, que acabou por se ver constrangido a emigrar para o Canadá porque a perda de direitos cívicos o inibia de fazer fosse o que fosse em França. Outros, antes deste, tiveram pior sorte mas, menos sérios preferiam fugir a prestar contas. De um deles veio a saber-se que investiu numa «dona Branca», que actuava no Mónaco e que estoirou de repente, deixando o pobre fugitivo em aflições, às quais os seus pares, instalados no poder, fizeram ouvidos de mercador...
Desta feita a intriga é mais insidiosa e sobretudo baixa, que vai fazendo estragos e não se vislumbra bem como vai acabar. Uma lista com nomes sonantes com contas suspeitas num Banco do Luxemburgo foi enviada para os jornais. Gente conotada com a Esquerda e com a
Direita, mas sem personalidades do Partido de Chirac causou perplexidade. Veio a concluir-se que teria sido concebida por encomenda a «alguém» dos «serviços secretos» do Estado para comprometer muitos adversários políticos em geral e Sarkosy, em particular.
MAM - Michèle Alliot-Marie, que tutela a Defesa, era suposta não estar por dentro da maquinação, porque o marido era tido por ser amigo de Sarcosy. Aliás, este Sarkosy é um poço de inimizades. A sua pouco clara relação com a filha de Chirac e o brusco afastamento dela, não favoreceu a ligação amigável entre os dois políticos. O problema, por outro lado, é que ser amigo de Chirac era pior do que ser visita frequente da casa de Mitterand, como Juppé haveria de reconhecer e muitos outros o puderam também avaliar...
Aos poucos muita sordidez chegou à sacrossanta comunicação social, confundindo mais que clarificando. Perante o escândalo , Chirac começou por fazer o que costuma: distanciar-se!
A Villepin deixava-se o papel de vilão. Ninguém acreditou. Ele é, tem sido, o moço de recados. Percebeu-se que rapidamente seria deixado cair. Não funcionou e a crise inchou e a ministra amuou e nuitos dedos apontaram mais para cima. Gerou-se a convicção de que o Presidente não encontrava substituto para Villepin. A precaridade tem limites e eleições a um ano de vista desmotiva qualquer um. Ao mesmo tempo fez-se crer que nem Sarcosy ia aceitar.
Enquanto isso o general da Secreta «descuidava-se» com umas anotações que comprometiam
Chirac, o que significava que Villepin também se podia vitimizar! A par, um ex-colaborador do Presidente aparece com um livro de memórias: «O gendarme de Chirac». Mais um que foi encaminhado por Villepin para um dos advogados de Chirac, que o aconselhou a pôr-se a andar e ir para Marrocos! Não foi e respondeu pelo crime de corrupção. Cumpriu a pena e agora apresenta a factura. Segue-se um juiz a admitir ter sido manipulado por um afim de Villepin.
A oposição, à esquerda e à direita, manifesta-se. A Comunicação Social relata e Chirac queixa-se da ditadura do rumor, da ditadura da calúnia.
Será mais legítima a conjura social? Sonora e maquiavélica?Mas, bem entendido, democrática?...

segunda-feira, maio 01, 2006

Baile para maiores de OITENTA

Madrid. Faltam 15 minutos para 18 horas. Calle de La Salud. Uma pequena multidão de homens e mulheres já muito para além da chamada terceira idade faz uma fila, no passeio e para baixo de uma porta que, em grandes painéis, anuncia "Baile Estilo Orquestra".
À volta da praça, com um pequeno jardim e uma esplanada, há pequenos círculos de homens com idades comparáveis à dos que permanecem na fila. De todos os lados da praça aparecem mulheres bem arranjadas, pintadas, vindas do cabeleireiro há poucos instantes. Aos pares. Também há casais, que, por vezes, trazem "de pendura" uma amiga.
Junto à entrada, o porteiro, um homem dos seus trinta e poucos anos, olha com ar divertido os seus "clientes", vai conversando com os que estão mais perto e às 18 horas em ponto dá a ordem de partida. Em pequenos grupos, homens e mulheres vão entrando. Eles, com gestos calculados, levam a mão ao bolso interior do casaco, elas metem a mão nas carteiras. A maior parte delas leva um saco nas mãos. Alguns deles - poucos - também.
A partir daquela hora e por muito mais tempo , chega gente de todos os lados, de Taxi, a pé, mas com um único objectivo: entrar naquela porta.
Muitas das senhoras que ali vi tinham, seguramente oitenta anos, ou perto. Alguns deles também.
Reparei especialmente num senhor, bem vestido, com casaco e calças claras, camisa azul escura e uma gravata também azul, muito clara, e que permaneceu longo tempo, com ar tímido, de verdadeiro adolescente, a olhar os outros que, afoitamente, entravam na sala do baile, "tipo orquestra". Era dos mais novos.
Estaria à espera que a dama dos seus sonhos chegasse?
Avaliaria ele, no seu conjunto, a frequência daquele dia?
A verdade é que tinha um ar triste, a contrastar claramente com o tom da roupa que vestia.
De repente, surge em cena um cavalheiro com um fato entre o castanho e o amarelo, com uma camisa salmão, aberta, de cabelo completamente branco, de tez bronzeada. Pára à beira da porta, encosta-se à parede, olha em redor, pucha de um telefone portátil e, pouco tempo depois de ter trocado meia dúzia de palavras, entrou decidido naquilo que só pode ser um salão enorme - tanta gente lá entrou.
Na fila inicial há uma figura de banda desenhada: fato branco, camisa preta e gravata branca, cabelos compridos completamente brancos, tem um olhar dominador. Pressente-se nele uma cabeça agitada pelas recordações de outros tempos em que faria rodopiar nos braços as mais belas de Madrid.
Na Calle de La Salud, a caminho da Gran Via, aparece um cavalheiro de cabelo e barba brancos, com ar distinto, olhar dirigido para lá do horizonte, a fumar com gestos estudados noutros tempos. Apoia-se numa bengala e permanece longo tempo a observar o movimento gerado em direcção ao "Estilo Orquestra". Passeia pelas mulheres que chegam um olhar enfastiado. Dá alguns passos em direcção à porta, ainda do outro lado da rua, mas, lentamente, um pouco mais tarde, atravessa a rua e, quando tudo indicava que iria entrar, passou ao lado, descendo em direcção à Alcalá.
Entre aquela gente de tanta idade, mas ligeira, algumas menos idosas e muito mais ligeiras conseguiram entrar no recinto. Percebeu-se que são conhecidas do porteiro, que, todavia, impediu a entrada a um grupo de três mulheres de origem africana que se faziam acompanhar de um jovem que ostentava um boné. Fiquei sem saber a razão da proibição. Talvez fosse o boné do jovem...
E quis saber o que era aquilo. Um madrileno bem disposto explicou-me que era "um baile para maiores de oitenta" e que acontecia todos os sábados e domingos. Reunia-se ali uma verdadeira multidão de gente com idade para desejar estar em casa e "bailam, bebem, riem, cantam, sentem-se acompanhados... e alguns arranjam companhia para o resto da vida..."
Um dia destes - contou ele - morreu um velho com oitenta e três anos; dançou muito e o coração não aguentou, veio a ambulância, foi uma tristeza, mas o baile continuou. Toda a gente que estava lá dentro pensou o mesmo: morreu feliz.