sexta-feira, maio 13, 2005

MEMÓRIAS AO SABOR DO VENTO/3

Mas em 1947, quando Leitão de Barros encenou o Cortejo Histórico, para celebrar os oitocentos anos da tomada de Lisboa, a II Grande Guerra já lá ia. A Festa badalava-se pelas avenidas da Baixa. Género popular do melhor e não digo para memória futura porque a televisão ainda não devia estar inventada na Europa. Eu odiava que me levassem a ver. Era comum o género de manif populista pelas ruas. As marchas, pelos santos populares ou os cortejos com criaturas importantes. Os putos mais pacientes ficavam sentados nas bordas dos passeis horas a fio. Ou então ficava-se de pé, atrás das costas dos mais altos. Datam daí a maioria dos meus complexos.Mas era comum, lá isso era, amontoar pessoas ao longo das ruas e avenidas a ver passar e muitas vezes nem se vislumbrava o que passava ou quem passava. Mas podia bater-se palmas à vontade.De vez em quando consegui ver uma mãozinha a acenar dentro do carro. De uma fez foi o Franco, que veio a Lisboa. Não me recordo se vi só a mãozinha se vi o generalissimo todo, mas vi qualquer coisa.
Oito Séculos de História ficava bem num cortejo festivo e parecia marcar o fim do incómodo governativo com o desfecho da guerra. Suficientemente desmascarado, o fascismo já não incomodava. Mesmo assim, não dava jeito exibir uma ditadura muito severa. De todo conveniente enfeitar o regime e congeminar eleições para inglês ver o país do faz de conta. Os eléctricos eram de uma companhia inglesa; os telefones ainda não tinham espírito santo de orelha, eram anglo-portuguese qualquer coisa. O Vinho do Porto bebia-se na Inglaterra.
O cortejo de Leitão de Barros terminava com as quatro raínhas de Lisboa. A moral vigente ainda não suportava misses meio descascadas. A que ia mais no alto era a Lisboa Eterna era minha colega no Ateneu, uns dois ou três anos mais adiantada.
Pois é! Lisboa era uma aldeia. Daí a nada seria a NATO a vir estruturar-se em Lisboa. Era tempo de ver outra realidade: montes de polícias e metralhadoras pelos telhados, diante do Técnico. A ditadura tinha-se solidificado. Ninguém queria saber, ninguém quis e quando assim é a obra nasce.
Já se podia celebrar à vontade o 28 de Maio. Era a revolução que prevalecia, uma festa de militares, em honra dos que salvaram a Pátria. A Pátria tinha ar de estar um tanto farta de ser salva, mas os militares não tinham sensibilidade, nem percebiam que já pertenciam ao passado.
A ditadura concentrava-se num só homem e assentava numa polícia política. Por isso Spínola esteve na siderurgia de Champalimaud. Maria Armanda Falcão, quando foi preciso, foi com Maria Barroso ao Aljube, visitar Mário Soares.
À beira dos anos 60 reencontei a «Lisboa Eterna» na Parede.Vinha de Moçambique e reencontrava os amigos. Um belo dia fugiu com Manuel da Fonseca, que era dado a distrações.O grupo, de que também fazia parte Mário Henrique Leiria entretinha-se alegremente a escandalizar o comum dos mortais.
A guerra estava esquecida, apesar da Coreia e da Argélia estar a chegar e a Indochina estar a aquecer. Os dias plácidos sucediam-se. Goa estava tão longe. Ainda não havia pílula. Mas estava a chegar...
Faltava uma dúzia de anos, para tudo se acabar na quarta-feira. E começar de novo.

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