sábado, maio 14, 2005

MEMÓRIAS AO SABOR DO VENTO(2)

Das outras coisas eu pouco sabia. Da janela de casa via um pedaço do Tejo e à distância as fragatas de vela erguida, como canta Carlos do Carmo, pareciam brinquedos. Como as outras fragatas metálicas, as da Marinha, presas à boia, não pareciam ameaçar nada nem ninguém. Não estou a dourar a pílula. A vida não era tão tranquila como os olhos de menino a viam. Quando subia a encosta para o Castelo passava pelo Aljube, mas não sabia o que era, nem quem albergava. Nem sabia de Caxias ou de Peniche e menos ainda de Tarrafal. Nem tribunal especial com juizes capazes de julgar o injulgável.
À volta do rapazinho que lia o mosquito o mercado negro florescia. Pelo Norte o volfrâmio fazia excêntricos todas as semanas. Por Setubal arribavam, discretamente, navios alemães, para levar o minério.
Aos sábados havia um senhor que contava uma história pela telefonia e aos domingos era Alfredo Quádrios Raposo que fazia o resumo da primeira parte e o relato da segunda, de um jogo de futebol realisado à tarde. Algumas vezes vi o jogo e depois, em casa, ouvia o relato do mesmo jogo.
O meu pai ia por vezes, à noite, a Campo de Ourique ver filmes ingleses fornecidos pela embaixada. Junto ao Chiado, abaixo do teatro da Trindade, que se chamava teatro porque passava filmes, estava o Ginásio, que só dava filmes alemães. Devia ser a maneira mais hábil que se conhecia de exibir uma neutralidade, que em boa verdade nada tinha de neutral. Como seria de esperar o conceito de neutralidade foi evoluindo à medida que o avanço dos aliados já poucas dúvidas deixava sobre o desfecho da guerra. O Estado Novo era bem entendido pró-americano. Era tempo de saber dos judeus e dos campos de extermínio. O governo rezava e não escondia alguma preocupação. A oposição terá acreditado no milagre, mas não terá feito tudo por merecê-lo...

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