segunda-feira, fevereiro 20, 2006

A Loira da Rua 48 Apagou o Incêndio

A Rua 48 foi alvoroçada durante aquela noite de Fevereiro em que o vento tocado a muitos quilómetros por hora deitou muitas das antenas de televisão por terra, destelhou algumas casas e assustou as velhinhas, assim como a D. Ermelinda, que já se habituou aos barulhos estranhos da vizinha de cima, mas nunca imaginou que o vento lhe abanasse a própria cama. Parecia coisa do demo...

Mas mais alvoroçada ainda ficou quando ouviu os carros dos bombeiros a buzinarem rua abaixo , rua acima, e os homens fardados de vermelho a saltar apressados, a esticar mangueiras e a montar escadas, a apontarem com a cabeça e as mãos o cimo de uma das casas, de onde saía uma fumarada.

- "É fogo! É fogo! "- repetiam as pessoas, assim como palavras ecoando em vales: é foooogooo!!!

Na casa da Loira da Rua 48.

Embrulhados em cobertores ou simplesmente vestidos de roupões, alguns deles visivelmente de Verão, visivelmente abertos a deixar ver ou somente antever as partes púdicas... é bem verdade que alguns deles já nem partes têm, mas é só para se perceber a aflição daquela gente quando verificou que o fogo, ou antes o fumo, vinha da casa da Loira da Rua, a sua heroína.

- "Meu Deus.. e as meninas ? como estarão as meninas?" - interrogava alguém, visivelmente aflito.

A D. Ermelinda saiu do prédio com as mãos na cabeça (não se sabe se para se proteger de alguma coisa, se para tentar pentear os trinta cabelos que lhe restam..)

Os bombeiros subiam e desciam e, de repente, começaram a enrolar as mangueiras, donde não tinha saído uma pinga de água, desmontaram as escadas "magirus", entraram nos carros vermelhos a bater as portas e foram para socorrer outras desgraças.

Estava o povo da Rua 48 a ajeitar os roupões, a compor os cobertores, a dar um jeito nos cabelos despenteados ( aquele sujeito que pinta o cabelo às quatro da manhã estava com meia cabeça branca e outra meia castanha...), quando, arranjada como deve estar alguém que se prepara para dar uma explicação à sua gente, a loira da Rua 48 abre a porta e aparece com as suas duas filhas.

O povão correu para junto delas. Ia toda a gente começar a falar ao mesmo tempo... mas ela não deixou. Com um sinal, feito de dedo na boca, ordenou silêncio.

- "Primeiro, eu explico, depois vocês perguntam..."

- "Qual depois...queremos saber tudo e já..."

- "Oh! mulher, quantas vezes já lhe disse para não aparecer em público com essas raízes à mostra. Porque não faz ali como aquele sujeito e não pinta o cabelo às quatro da manhã? E, agora, se querrem saber o que de facto aconteceu. fiquem calados e ouçam..."

Voltou a fazer-se silêncio.

- " - É que eu tinha umas velas junto do retrato da irmã Lúcia e de umas flores e o ventou juntou o que não devia juntar, a chama das velas com o papel da fotografia e as flores. Começou uma grande fumarada e eu, cautelosa, para que a cera das velas e os restos mortais da santa não provocassem alguma explosão, não deitei água, só soprei. O fumo começou a sair pela chaminé e aqui o nosso vizinho, aquele fininho ali, que, mesmo com chuva e vento tem que ir fumar para a janela, resolveu chamar os bombeiros...

- "Mas que santa?" - perguntou a velha encarquilhada que costuma ir discutir preços com o chinês da loja do chinês.

- "A santa Lúcia, pois quem havia de ser... aquela que vai para Fátima..."

- " Mas ela ainda não é santa..." - respondeu a velhota, esganiçando-se ainda mais.

- "Diz muito bem: ainda não é... mas vai ser. A esta hora o Papa João Paulo II está a tratar de tudo lá no céu. Por isso lhe acendi umas velas..."

- "Mas, a senhora podia ter feito isso com luz eléctrica, as velas são muito perigosas..."

- "Oh ! senhor Manuel, o senhor julga que eu estou para encher os pançudos da EDP?. Há muito que só uso velas. Velas que compro no chinês, muito mais baratas que noutro sítio. E a D. Mariquinhas também não deve andar a acender as lâmpadas porque eu também a lá vejo a comprar velas..."

A senhora mais velha que negou a santidade de Lùcia saiu de fininho e fechou a porta de casa devagar, ao contrário do que costuma fazer.

- " E pronto, acabou o comício. Eu e as minhas filhas, apagámos o incêndio com meia dúzia de sopros e assim também não subimos a conta da EPAL. Boa noite. Não se esqueçam de se agasalhar que a noite está fria..."

E lá foi ela, com o seu ar de mulher firme, com as duas filhas, uma em cada mão, para sua casa. Mas ainda teve tempo para ouvir de uma das vizinhas o quão estava espantada por ter descoberto na Loira da Rua 48 uma devota: "é uma santa mulher... é uma santa mulher".

A Loira ficou, todavia, sem saber se a vizinha se referia a ela ou à irmã Lúcia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Loira peidorreira....?

M.Pedrosa disse...

Oh! Anónimo:

o post de um blogue não é a mesma coisa que as paredes das casas de banho onde costuma exercitar a sua falta de jeito para a escrita.

Este bem que poderia ser o contra-comentário da Loira da Rua 48. Mas não é, é meu, o autor da estória.

M. Pedrosa