quinta-feira, dezembro 01, 2005

A Loira da Rua 48- II

"... A senhora devia ir pintar as raízes...está a perceber? Pintar as raízes!!!
No autocarro, a abarrotar de corpos adiposos e habituados a uma certa larguesa, toda a gente virou a cabeça para o lado donde vinha aquela voz, aparentemente zangada, mas, no fundo, com um ligeiro tom de imitação do Herman louro.
"... e sabe que mais?... não vou perder tempo consigo...Vá...vá pintar as raízes..."
Mesmo o motorista do autocarro tentou saber, olhando pelo retrovisor, o que se passava. " Só podia ser ela, aquela loira que reclama sempre lugar sentado e espaço para se movimentar. Ela e a outra, a vizinha. Falam uma com a outra, riem-se e parece que estão a gozar com toda a gente. Agora está a dizer áquela desgraçada que devia ir pintar as raízes. As raízes do cabelo, claro...de facto, a senhora devia ter mais cuidado...aquilo está com um aspecto... benza-a Deus..." - Assim pensava o motorista, enquanto olhava de esguelha para os passes que lhe iam mostrando.
Todavia, ninguém se atrevia a dizer como a loira: " com direito a ar condicionado e a lugar sentado, porque pago adiantado". Lá voltava ele a pensar na loira.
Lá atrás a conversa estava acesa entre a Loira da Rua 48 e a vizinha da frente, cujo marido protesta sempre contra tudo e todos. Até com o Bush se mete. Se um dia a CIA o descobre, fica ele sem direito de acesso à garagem e até corre o risco de ir para Cuba, isto é, para Guantanamo.
"... Então não quer saber?...tive um pesadelo esta noite... um horror...eu morava no bairro da Penitenciária, aquele ali por detrás, está a ver? e só tinha vizinhos pirosos... até o João Pinto e a Maria Cruz, imagine...lembrei-me agora porque a velhota das raízes ao léu me sugeriu uma projecção da mulher do João Pinto... Imagine..."
A vizinha, senhora recatada e pouco habituada a conversas públicas no autocarro, sufocava o riso e olhava em redor a tentar perceber as reacções do pessoal.
Muitos ainda dormiam, outros tinham cara de quem não tinha comido o pequeno almoço e ia gastar, na pastelaria ao lado do emprego, uma percentagem razoável do dinheiro que iriam ganhar em, pelo menos oito horas de trabalho, isto se o patrão não os obrigasse a mais duas ou três, ou mesmo quatro extra, sem remuneração ameaçando com um despedimento possível, para reestruturação da empresa.
E a loira continua a contar o "pesadelo":..." ora, a vizinha não quer saber, aqueles safardanas todos, divirtiam-se a sério, tinham salas de jogos, horas para o sol, onde trabalhavam para o bronze, cuidavam dos cabelos uns dos outros... todos os dias! O trabalhão! e, seguramente, ainda recebem algum no final do mês...é ou não um verdadeiro pesadelo?
A vizinha continuava a sufocar o riso.
Ao lado, uma brasileira de ar ligeiro, ficou interessada na conversa: "... me conta, vai...eu posso entrar nesse jogo...? Sabe, cara, tou mêmo precisada de ganhar uma nota... me conta..."
Chegou a paragem da loira. Enquanto calcava forte o chão do autocarro em direcção à saída toda a gente a olhava. Alguns com alguma admiração, outros com raiva. Como se atrevia aquela mulher, loira e bonita, confrontá-los com a sua própria impotência, que em alguns casos se transformava em gaguês?
A brasileira ainda pediu: "me liga, vai... quero saber desse jogo".
A loira riu e acenou que sim: "eu te ligo..."

1 comentário:

Rita disse...

Mas afinal quem é a loira????