A Rua 48 está sempre à espreita. Uns e umas por detrás das cortinas, outros, de janela aberta, a mulher proibe de fumar dentro de casa, por isso há que poluir a Rua 48. E aproveitam para ver quem passa, quem chega. Vão contando estórias sabidas . Quando não sabem, inventam. Quando pára um taxi os voyeus ficam à espera de ver sair uma senhora a cambalear e lá voltam a contar os trambolhões de outros tempos.
Sobem e descem a rua sem se olharem, como se não se conhecessem, mas fazem pequenas reuniões sociais nas escadas dos prédios, comentando os últimos acontecimentos.
Ontem, de manhã, pequenos grupos foram saindo aos poucos dos prédios, portas escancaradas, bocas abertas. A Loira da Rua 48 saía de casa com duas lindas crianças (loiras) pela mão. Vistosas, sorridentes.
- Esta é a Marilú - e apontava para a da mão direita.
- E esta é a Francisquinha - a da esquerda
Explicava ela à rua. Já toda a gente se aproximava para tentar perceber como é que tal tinha aocontecido... a Loira da Rua 48, mãe, se nunca ninguém a tinha visto, ao menos, inchada?...
- São minhas filhas, adoptivas. Lindas...não são? - perguntava sem esperar resposta
- A partir de agora, não quero caixotes de lixo a impedir a passagem das crianças nos passeios, nem carros mal estacionados. A partir de hoje, todos os dias vou dizer ao presidente da Junta que quero espaços livres para as crianças poderem brincar na Rua.
Ninguém dizia nada. Que acontecimento!!! De facto, aquela Rua devia fazer parte do filme do Ricardo.
Mas o discurso ainda não tinha terminado.
- A partir de hoje não quero ouvir mais barulho depois das dez da noite - é assim que a lei manda.
A Marilú e a Francisquinha olhavam para a sua mãe com enormes sorrisos, de olhos brilhantes. Há tanto tempo que esperavam uma mãe assim...
- Vamos, minhas filhas, agora que a Rua vai entrar na ordem, vamos redefinir as leis de utilização dos transportes..
Toda a Rua foi atrás da Loira e de suas filhas.
Na paragem, as amigas ficaram a olhar para o cortejo. Festejaram exuberantmente a Marilú e a Francisca.
Chegou o autocarro e o motorista parou a medo. "...O que seria aquilo...tanta gente...uma manifestação de protesto por causa da carroça?..."
A Loira da Rua 48, mais as suas filhas, foram as primeiras a entrar. E o motorista ouviu, petrificado, a sentença:
- A partir de hoje, neste autocarro, quem vier acompanhado de crianças, tem direito a lugar sentado e e não paga título de transporte. Isto é apenas a adaptação de uma lei que vigora na Suécia desde os anos 60. Foi de lá que vieram as minhas filhas... vá... vá... ponha a carroça a andar, ou quer que eu grite?
O pessoal da Rua, que tinha acompanhado a nova família, irrompeu numa salva de palmas. E até o pássaro que permanece na gaiola e só fala asneiras, gritou do alto do seu poleiro: "Viva a Loira da Rua 48". O dono não gostou nada e ameaçou-o de não voltar a dar-lhe comida enquanto ele não comer a que está no chão. Ouviu das boas, irrepetíveis num blogue honrado. Até ficou a saber que o pássaro sabe que ele anda a pintar o cabelo às quatro da manhã...
"Ora, até que enfim aparece alguém com capacidade de mando nesta Rua" - disse o senhor alto e bem vestido e que à tarde traz consigo sempre um saco de plástico de marca sonante.
"Podemos criar aqui um espaço livre de exploração...livre da imprensa capitalista... livre de armas nucleares..."- entusiasmou-se o senhor da garagem.
"Mau!..." ouviu-se uma voz entre dentes dizer.
"Querem lá ver que ainda vamos ter um PREC exclusivo da Rua 48..." - disse outra voz desconhecida.
E, de repente o grupo desfez-se. Voltaram às suas reuniões privadas, nas escadas do prédio.
No autocarro a viagem prosseguia animadíssima. Toda a gente, finalmente, discutia alguma coisa e abandonava aquele ar de cordeiro a caminho do sacrifício. De facto, as crianças deviam determinar regras.
A discussão foi-se prolongando durante todo o dia naquela linha, porque à medida que iam entrando passageiros, assim que tomavam conhecimento do tema entusiasmavam-se e contribuiam com achegas importantes... até que o motorista, quase aterrorizado, telefonou para o chefe, que mandou colocar na indicação do destino a palavra "reservado". A carroça voltou à garagem e o Conselho de Administração da empresa de transportes reuniu de emergência, porque a cidade toda clamava por novas regras na utilização dos transportes públicos.
Conta-se à boca pequena que mandaram uma delegação falar com a Loira da Rua 48 para lhe oferecer um carro, ao que ela respondeu: "nunca na minha vida terei um monte de lata desses...um instrumento de poluição, uma arma perigosíssima".
PS. - Um dia destes voltarei com outro episódio, este já vai muito longo...
1 comentário:
Delirante! Não deixe passar muito tempo até à próxima "estória" ... sou a fã número 1 dessa loira!! Um mimo da classe "platinada"!!! Fico à espera...
Ass: Uma loira
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