As habituais tertúlias das entradas dos prédios da Rua 48 começaram a crescer, quer em tempo, quer em número de participantes, prolongavam-se já pela rua. O murmúrio foi ampliando-se. Toda a gente comentava e especulava sobre a vida e a sorte daquela senhora, sem abrigo, vivendo num carro.
De manhã lá estava ela, às vezes com calças de fato de treino - "deve ser o pijama" - comentava a D. Camila, a primeira a dar conta daquela situação verdadeiramente inusitada.
À hora de almoço, enquanto lê alguns papéis - por vezes o jornal - come fruta, pão...
" Um dia destes tinha a casa toda desarrumada" - exlica a D. Ermelinda, que agora resolveu cobrir os trinta cabelos com um capucho, daqueles que se usam na neve.
"A casa?" - perguntou o sr Manuel...
" A casa, sim, roupas, coisas e até lençóis, tudo desarrumado no banco de trás do automóvel".
Mais acima, outro ajuntamento comentava a mesma situação. Toda a gente queria saber o que teria acontecido à senhora do carro preto.
"Que forma estranha de viver... é assim uma espécie de sem abrigo de luxo! ", dizia a D. Francelina, a pensar na nora - talvez ela também quisesse ir habitar um automóvel... não podia era ser assim, como aquele, uma viatura de luxo.
Enfim, a Rua 48 vivia intensamente o drama da dama do carro preto. Para as senhoras mais velhas, aquilo era fuga de casa. "Seguramente o marido batia-lhe e ela não tem cara de parva, não aguentou, como no nosso tempo, que tínhamos de apanhar e calar" - era o pensamento quase unânime das mulheres.
Os homens da rua olhavam para a situação com outros olhos, desconfiados. Aquilo podia ser mau exemplo. "E, se, de repente, as suas próprias mulheres resolvessem sair de cada e instalar-se no automóvel?... Que raio de ideia aquela de as ter mandado tirar a carta. É verdade que assim elas também iam buscar as crianças à escola e iam sózinhas às compras, mas esta... fazer do carro casa nem ao diabo lembrava."
E havia os outros, os que pensavam na hipótese de uma aventura... talvez a senhora tivesse "loja" montada no carro. Então a D. Ermelinda não tinha dito que lhe tinha visto a casa toda desarrumada...
"E será que tem filhos? "... interrogava-se o senhor dos sacos, o sr. Abrantes.
"Que drama!" - era a expressão mais ouvida.
E logo agora que a D. Vitória tinha falecido. A quem pedir conselho sobre a atitude a tomar? A Rua 48 estava numa verdadeira confusão. Foi o sr. Ferreira, o homem da garagem, que se lembrou; "... mas nós temos uma nova líder, a nossa Loira..."
E lá foi uma delegação a casa da Loira que há dias não aparecia na rua, depois que foi ao funeral da D. Vitória.
Apareceu à porta com as filhas. Marilú e Francisquinha estavam tristes, abatidas, gostavam tanto sair e a mãe, nos últimos dias, só queria estar em casa.
" Então, o que se passa? "- perguntou com voz triste.
Toda a gente queria falar ao mesmo tempo e logo ela, muito calma, serena, disse: "então? ... assim não nos entendemos. Um de cada vez. Sr. Ferreira, explique lá o motivo de tanto alvoroço".
Muito lisongeado, o sr. Ferreira, descreveu a situação da senhora que vivia dentro de um carro, ali mesmo na Rua 48 e ninguém sabia donde ela tinha vindo, quem era, o que fazia, essas coisas todas.
"Mas, então, as pessoas são livres para viver onde quiserem, mesmo na rua. O que é que vos preocupa? Estou mesmo a ver que é só curiosidade mórbida... Já se interrogaram sobre se a senhora precisa de alguma ajuda?...."
Era verdade, ninguém tinha posto essa questão.
A loira agarrou nas suas filhas e lá foi com a delegação para a rua. Chegados perto do carro preto, ela e as filhas aproximaram-se. Bateu no vidro da janela do lado onde estava a senhora a ler um livro.
Cá de longe, o resto da rua observava a cena. A loira entrou no carrro. As meninas ficaram muito sossegadas, sentadas, uma de cada lado da mãe, no banco de trás.
De manhã lá estava ela, às vezes com calças de fato de treino - "deve ser o pijama" - comentava a D. Camila, a primeira a dar conta daquela situação verdadeiramente inusitada.
À hora de almoço, enquanto lê alguns papéis - por vezes o jornal - come fruta, pão...
" Um dia destes tinha a casa toda desarrumada" - exlica a D. Ermelinda, que agora resolveu cobrir os trinta cabelos com um capucho, daqueles que se usam na neve.
"A casa?" - perguntou o sr Manuel...
" A casa, sim, roupas, coisas e até lençóis, tudo desarrumado no banco de trás do automóvel".
Mais acima, outro ajuntamento comentava a mesma situação. Toda a gente queria saber o que teria acontecido à senhora do carro preto.
"Que forma estranha de viver... é assim uma espécie de sem abrigo de luxo! ", dizia a D. Francelina, a pensar na nora - talvez ela também quisesse ir habitar um automóvel... não podia era ser assim, como aquele, uma viatura de luxo.
Enfim, a Rua 48 vivia intensamente o drama da dama do carro preto. Para as senhoras mais velhas, aquilo era fuga de casa. "Seguramente o marido batia-lhe e ela não tem cara de parva, não aguentou, como no nosso tempo, que tínhamos de apanhar e calar" - era o pensamento quase unânime das mulheres.
Os homens da rua olhavam para a situação com outros olhos, desconfiados. Aquilo podia ser mau exemplo. "E, se, de repente, as suas próprias mulheres resolvessem sair de cada e instalar-se no automóvel?... Que raio de ideia aquela de as ter mandado tirar a carta. É verdade que assim elas também iam buscar as crianças à escola e iam sózinhas às compras, mas esta... fazer do carro casa nem ao diabo lembrava."
E havia os outros, os que pensavam na hipótese de uma aventura... talvez a senhora tivesse "loja" montada no carro. Então a D. Ermelinda não tinha dito que lhe tinha visto a casa toda desarrumada...
"E será que tem filhos? "... interrogava-se o senhor dos sacos, o sr. Abrantes.
"Que drama!" - era a expressão mais ouvida.
E logo agora que a D. Vitória tinha falecido. A quem pedir conselho sobre a atitude a tomar? A Rua 48 estava numa verdadeira confusão. Foi o sr. Ferreira, o homem da garagem, que se lembrou; "... mas nós temos uma nova líder, a nossa Loira..."
E lá foi uma delegação a casa da Loira que há dias não aparecia na rua, depois que foi ao funeral da D. Vitória.
Apareceu à porta com as filhas. Marilú e Francisquinha estavam tristes, abatidas, gostavam tanto sair e a mãe, nos últimos dias, só queria estar em casa.
" Então, o que se passa? "- perguntou com voz triste.
Toda a gente queria falar ao mesmo tempo e logo ela, muito calma, serena, disse: "então? ... assim não nos entendemos. Um de cada vez. Sr. Ferreira, explique lá o motivo de tanto alvoroço".
Muito lisongeado, o sr. Ferreira, descreveu a situação da senhora que vivia dentro de um carro, ali mesmo na Rua 48 e ninguém sabia donde ela tinha vindo, quem era, o que fazia, essas coisas todas.
"Mas, então, as pessoas são livres para viver onde quiserem, mesmo na rua. O que é que vos preocupa? Estou mesmo a ver que é só curiosidade mórbida... Já se interrogaram sobre se a senhora precisa de alguma ajuda?...."
Era verdade, ninguém tinha posto essa questão.
A loira agarrou nas suas filhas e lá foi com a delegação para a rua. Chegados perto do carro preto, ela e as filhas aproximaram-se. Bateu no vidro da janela do lado onde estava a senhora a ler um livro.
Cá de longe, o resto da rua observava a cena. A loira entrou no carrro. As meninas ficaram muito sossegadas, sentadas, uma de cada lado da mãe, no banco de trás.
- A senhora desculpe a minha aparente intromissão na sua vida, mas sabe, esta é uma rua muito especial. Aqui toda a gente sabe de tudo e quando acontece alguma coisa que não consegue explicar, as pessoas ficam excitadas, nervosas. E confiam em mim...
- Já percebi - respondeu a senhora do carro preto - primeiro que a senhora é a líder da rua e depois que toda a gente está muito curiosa pelo facto de me ver aqui durante algumas horas do dia e até da noite...
- É isso mesmo... quanto à liderança... enfim... estamos num processo difícil por causa da morte da D. Vitória... mas em realção ao resto é assim mesmo.
- Então eu explico: sou professora do Ensino Secundário, sou do Norte, tenho lá a família, dois filhos e o marido. Acontece que fui colocada numa Escola nos subúrbios de Lisboa... uma coisa verdadeiramente horrível, mas eu não posso deixar de dar aulas, porque, entretanto, o meu marido ficou desempregado.
- Só desgraças...
- Não diria tanto, mas não tem sido agradável, tanto mais que alugar uma casa naquele subúrbio não faz sentido, em Lisboa são muito caras, bem como os hotéis. Ora, como preciso de poupar o mais possível, resolvi trazer o nosso carro para baixo, fazer dele a minha casa e alimentar-me de uma maneira saudável e barata.
- Estou a perceber...
- Para não ter sempre de andar à procura de lugares seguros onde possa estar, resolvi, depois de ter experimentado vários locais, fazer desta rua a minha rua. A verdade é que já gosto da 48 e das pessoas. Têm um ar simpático, embora me pareça que comunicam pouco umas com as outras..O meu carro é a minha casa. Tenho esperança de que em breve o meu marido possa arranjar emprego para tudo voltar à normalidade. Ele é engenheiro e agora com esta coisa do choque tecnológico, vai, seguramente...
- ...Estou a ver que a senhora é uma optimista. E ainda bem. O tal choque tecnológico não me parece mais que conversa, mas a esperança é a última a morrer... vou então esclarecer a minha gente, explicar-lhes os motivos da sua presença aqui. Terei muito gosto em convidá-la para um chá na minha casa...
- Oh!.. muito obrigado, mas não se incomode.
- ... Combinamos depois, agora tenho que ir... estão todos nervosos.
- Muito obrigado pela sua atenção.
Quando a Loira saiu do carro preto, toda a gente se aproximou dela para saber o que se passava com aquela personagem misteriosa.
Explicou. Houve um movimento de surpresa geral. Toda a gente estava à espera de uma estória passional, de violência doméstica, ou coisa assim.
- Pronto. Está tudo esclarecido, temos mais uma vizinha. O melhor é tratar-mo-la bem. Esta rua tem mais uma casa, que, por acaso é um carro. Espero que os da Câmara não se lembrem de cobrar contribuição autárquica. Coma falta de dinheiro com que andam devemos esperar tudo.
Até depois...
E lá foi a Loura da Rua 48 para casa, contrariando a vontade da Marilú e da Francisquinha. Mas, para ela era ainda tempo de luto por causa do desaparecimento da D. Vitória.
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