sábado, outubro 08, 2005

CLARO QUE HÁ MAR E MAR...

Houve para mim, que fui e voltei. E à medida que os anos passam e a vida gira, de cada vez vou indo menos e vou ficando mais. Mas fui sempre um lisboeta discreto e obscuro. A minha cidade era o que não é hoje: um sítio para pessoas, uma cidade cheia de lisboetas e com alguns estranhos, poucos. Hoje a capital não tem lisboetas, tem gente. Perdeu a identidade, despiu-se de tradição.
Nasci e cresci Lisboa fora. Sem «Metro» mas com muito eléctrico. Só depois do fim da II Guerra Mundial chegariam os autocarros. À medida que a noite avançava, os eléctricos espaçavam e a pacatez da cidade convidava ao passeio a pé. Aqui e além vislumbrava-se um polícia, e mais além um guarda nocturno e não raro juntos, de paleio. Automóveis parados, encostados aos passeios.
De vez em quando alguém batia palmas, alguém que esquecera as chaves da porta do prédio. Era a oportunidade para o guarda nocturno amealhar algum trocado. Ao romper da aurora as ruas começavam a encher-se de mulheres a caminho de trabalho nos mercados ou nas limpezas de estabelecimentos, repartições ou bancos.
Claro que havia zonas da cidade menos pacatas. O Cais do Sodré, cheio de trepidação nocturna, nos bares que ainda não se denominavam de alterne; o Bairro Alto concentrava o maior número de prostíbulos, mas havia-os também dispersos por outros pontos da cidade, preferencialmente junto ao rio ou nas imediações da av. da Liberdade, onde também se pescava na rua...
Tive alguma sorte quando chegou o meu tempo de passar da teoria à prática. A teoria era ingénua e a prática falseada e, não raro envenenada. A minha sorte consistiu na penicilina, acabada de chegar ao mercado. Ainda alguns meses antes era necessário ir à Cruz Vermelha, fazer bicha para trazer parte da receita médica e portanto doseada consoante a gravidade das doenças. Até então para aliviar os tropeções tinha que recorrer-se a argálias e ainda hoje, só de pensar nisso fico pálido e minúsculo.
A vida era um jogo e era preciso aprender. Nunca tive muito jeito para o jogo. Joguei com bolas de trapos, na escola sem grande sucesso. Na ginástica nunca consegui saltar em extensão. Fui bom nos matraquilhos e superei os amigos no bilhar. Só no pocker me sinto à altura de me bater com os semelhantes, mas levei tempo. Recordo-me de uma vez regressar de uma noite de pocker, madrugada dentro, de bolsos vazios, na companhia do Gonçalo Duarte, que conheci no Gelo, igualmente sem sucesso na mesa. Sentamo-nos num banco da 24 de Julho, a ganhar fôlego para o resto da caminhada, e avistamos um grupo ruidoso de varinas que vinha da Madragoa. Discução acesa e uma dela atirou um insulto suez. A outra gaguejou uma série de impropérios e gritou para a outras: «fersureira, eu!?Eu!». Levantou as saias e começou a dar palamadas sobre a cueca: «Olha aqui! Olha aqui...pr'o calo dos colhões do meu marido!»
Deve datar dessa noite alguma da insegurança que me foi afligindo ao longo dos anos...

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