Vou um pouco mais atrás, ao lembrar-me do Afonso, que viria a ser o primeiro rei de Portugal, que comprou ao chefe dos católicos o reconhecimento. Possuia, como se sabe, todos os requisitos para ser reconhecido pela hierarquia romana. Prendera a mãe na masmorra do castelo e traiu a confiança do aio. Não foi eleito pelo povo, mas foi por ele aclamado.
Já Pedro era de outro filme. Perdeu-se de amor por Inês, apesar de casado, por interesses do reino, com uma princesa castelhana e porque rei é rei coroou a defunta, que se tornou rainha sem reinar, mas ficou na História. Dela se lembrou Camões e mais tarde Alegre, a propósito de um devaneio amoroso.
Mas do que ninguém parece lembrar-se é do período conturbado que antecedeu o Estado Novo salazaresco. Há como que uma cortina de fumo sobre aqueles anos travados pelo o 28 de Maio.
Sei alguma coisa desse tempo por descrições dramáticas da minha avó. Ela, com o marido e o rancho de filhos, e ainda um cunhado, fugiram de Porto, alucinados. Não eram nem fidalgos nem burgueses endinheirados. Operários da construção civil. Os dois filhos mais velhos já trabalhavam e eram ourives. As duas meninas e o mais novo frequentavam a escola. O garoto, que viria a ser o meu pai,tinha acabado a segunda classe e em Lisboa já não voltou aos bancos da escola; foi trabalhar no comércio. Instalados numa parte de casa. Duas salas, só uma com janela para o exterior, para todos. A mãe dispunha de uma máquina de costura "singer" e costurava dia e noite. O rapaz mais velho tornou-se alcoólico e viria a morrer de cirrose; as meninas foram evidenciando pouco recato. A mais velha casou e teve duas meninas, mas perdeu o marido. A outra foi trabalhar para as tintas, num velho armazém, em S. Paulo. Casou, teve uma filha e virou, até ao fim dos seus dias, dona de casa.
A minha avó era salazarista, Enquanto fui miudo não me ralei com isso. Ia vê-la amiude por mor dos dez tostões que ela me dava de cada vez que lá ia. Já adolescente despertou-me a curiosidade. O meu pai ou os meus tios nunca souberam ou quiseram explicar-me. A minha avó era uma mulher sólida e independente. Teve de assumir o barco desde que o marido morreu poucos anos depois de se instalarem em Lisboa. A filharada foi saindo, incluindo o último, já nascido na capital e ela acabou só, na sua parte de casa.
O que me descreveu do seus tempos no Porto foi, de facto, impressionante. Um clima policial, sombrio. Rusgas permanentes, prisões arbitrárias. Tortura. Uma forma de ameaça permanente que aterrorizava especialmente as mulheres, mães de família. A situação não diferia muito em Lisboa, mas poupava de algum modo os forasteiros, desde que não conotados com facções políticas. Ainda assim contou-me casos de violência notórios, que hoje me parece estranho que se hajam volatilizado, como que durante muitos anos fez com que a rua Serpa Pinto fosse conhecida por «rua da leva da morte». Um desses grupos de cidadãos suspeitos de actividades políticas ilícitas, detidos por rusgas nocturnas, alguns dos quais em casa, levados para as instalações policiais, onde se instalou depois o Governo Civil, esbarrou com uma manifestação tumultuosa e não foi de modas: encostou os detidos à parede da rua e fusilou-os.
A minha avó, que trabalhava desde as oito da manhã até não sei às quantas da noite, quis crer que a situação no país foi melhorando desde o «28 de Maio». Quem não devia, não temia, achava ela.
Tive sorte, pelo meu lado, em ter tido um prof na instrução primária que não alinhava pelo conceito do Estado Novo. Era trasmontano e não sei o que é que ele pode ou não ter sofrido, mas não alinhava, não vendia: ignorava. Nunca o ouvi falar de Salazar, nem do Estado Novo. Fomos poupados a isso.
Eu sei que do meu tempo muita gente sofreu agruras. O Tarrafal é uma bandeira do Estado Novo, significativa. Provavelmente não tão significativa como Guantanamo. E sei que o Santa
Maria existiu e sei que por cima de nós um avião despejou um grito de revolta, em forma de panfletos. Fomos inovadores na matéria.
Mas Salazar era uma triste e solitária criatura. Era o rosto do regime. «Reinou» até ao fim, porque o deixaram conduzir a viatura. A par dele, Franco dominou toda a Espanha. Tal como o vizinho mais antigo, morreu mo seu posto. Mas, quer um, quer outro, não poderiam ter exercido o poder sem amparo. Existiu, de ambos os lados, muito boa (ou má?) gente que apoiou e segurou o poder. Era possível derrubá-los, se tivesse sido essa a vontade dos que podiam fazê-lo e que o fizeram quando lhes deu na gana. Curiosamente, nem Franco nem Salazar foram derrubados, mas os regimes sossobraram após a morte natural dos manda-chuvas.
Ainda hoje, a propósito do «manholas» ter ganho um prémio, ouvi uns artistas falar da emancipação das mulheres, como se também disso ele tivesse culpa.
A concordata era um (péssimo) acordo entre duas partes, mas dá mais jeito condenar só uma delas. A guerra em África foi tida como uma causa que acelerou positivamente a emancipação feminina. Exagero, claro. Não foi por ser a de África, mas por ser a guerra, como se viu na Europa, mais precisamente. Mas independentemente dos divórcios ou das guerras, o que despoletou a explosão libertadora da condição feminina foi a pílula, meus senhores. O aborto só se tornou o dilema monstruoso a que chegou a partir do 25 de Abril. E muito por culpa de quem sabia, porque podia, ultrapassar obstáculos e não foi capaz de fazer a cama!
Já Pedro era de outro filme. Perdeu-se de amor por Inês, apesar de casado, por interesses do reino, com uma princesa castelhana e porque rei é rei coroou a defunta, que se tornou rainha sem reinar, mas ficou na História. Dela se lembrou Camões e mais tarde Alegre, a propósito de um devaneio amoroso.
Mas do que ninguém parece lembrar-se é do período conturbado que antecedeu o Estado Novo salazaresco. Há como que uma cortina de fumo sobre aqueles anos travados pelo o 28 de Maio.
Sei alguma coisa desse tempo por descrições dramáticas da minha avó. Ela, com o marido e o rancho de filhos, e ainda um cunhado, fugiram de Porto, alucinados. Não eram nem fidalgos nem burgueses endinheirados. Operários da construção civil. Os dois filhos mais velhos já trabalhavam e eram ourives. As duas meninas e o mais novo frequentavam a escola. O garoto, que viria a ser o meu pai,tinha acabado a segunda classe e em Lisboa já não voltou aos bancos da escola; foi trabalhar no comércio. Instalados numa parte de casa. Duas salas, só uma com janela para o exterior, para todos. A mãe dispunha de uma máquina de costura "singer" e costurava dia e noite. O rapaz mais velho tornou-se alcoólico e viria a morrer de cirrose; as meninas foram evidenciando pouco recato. A mais velha casou e teve duas meninas, mas perdeu o marido. A outra foi trabalhar para as tintas, num velho armazém, em S. Paulo. Casou, teve uma filha e virou, até ao fim dos seus dias, dona de casa.
A minha avó era salazarista, Enquanto fui miudo não me ralei com isso. Ia vê-la amiude por mor dos dez tostões que ela me dava de cada vez que lá ia. Já adolescente despertou-me a curiosidade. O meu pai ou os meus tios nunca souberam ou quiseram explicar-me. A minha avó era uma mulher sólida e independente. Teve de assumir o barco desde que o marido morreu poucos anos depois de se instalarem em Lisboa. A filharada foi saindo, incluindo o último, já nascido na capital e ela acabou só, na sua parte de casa.
O que me descreveu do seus tempos no Porto foi, de facto, impressionante. Um clima policial, sombrio. Rusgas permanentes, prisões arbitrárias. Tortura. Uma forma de ameaça permanente que aterrorizava especialmente as mulheres, mães de família. A situação não diferia muito em Lisboa, mas poupava de algum modo os forasteiros, desde que não conotados com facções políticas. Ainda assim contou-me casos de violência notórios, que hoje me parece estranho que se hajam volatilizado, como que durante muitos anos fez com que a rua Serpa Pinto fosse conhecida por «rua da leva da morte». Um desses grupos de cidadãos suspeitos de actividades políticas ilícitas, detidos por rusgas nocturnas, alguns dos quais em casa, levados para as instalações policiais, onde se instalou depois o Governo Civil, esbarrou com uma manifestação tumultuosa e não foi de modas: encostou os detidos à parede da rua e fusilou-os.
A minha avó, que trabalhava desde as oito da manhã até não sei às quantas da noite, quis crer que a situação no país foi melhorando desde o «28 de Maio». Quem não devia, não temia, achava ela.
Tive sorte, pelo meu lado, em ter tido um prof na instrução primária que não alinhava pelo conceito do Estado Novo. Era trasmontano e não sei o que é que ele pode ou não ter sofrido, mas não alinhava, não vendia: ignorava. Nunca o ouvi falar de Salazar, nem do Estado Novo. Fomos poupados a isso.
Eu sei que do meu tempo muita gente sofreu agruras. O Tarrafal é uma bandeira do Estado Novo, significativa. Provavelmente não tão significativa como Guantanamo. E sei que o Santa
Maria existiu e sei que por cima de nós um avião despejou um grito de revolta, em forma de panfletos. Fomos inovadores na matéria.
Mas Salazar era uma triste e solitária criatura. Era o rosto do regime. «Reinou» até ao fim, porque o deixaram conduzir a viatura. A par dele, Franco dominou toda a Espanha. Tal como o vizinho mais antigo, morreu mo seu posto. Mas, quer um, quer outro, não poderiam ter exercido o poder sem amparo. Existiu, de ambos os lados, muito boa (ou má?) gente que apoiou e segurou o poder. Era possível derrubá-los, se tivesse sido essa a vontade dos que podiam fazê-lo e que o fizeram quando lhes deu na gana. Curiosamente, nem Franco nem Salazar foram derrubados, mas os regimes sossobraram após a morte natural dos manda-chuvas.
Ainda hoje, a propósito do «manholas» ter ganho um prémio, ouvi uns artistas falar da emancipação das mulheres, como se também disso ele tivesse culpa.
A concordata era um (péssimo) acordo entre duas partes, mas dá mais jeito condenar só uma delas. A guerra em África foi tida como uma causa que acelerou positivamente a emancipação feminina. Exagero, claro. Não foi por ser a de África, mas por ser a guerra, como se viu na Europa, mais precisamente. Mas independentemente dos divórcios ou das guerras, o que despoletou a explosão libertadora da condição feminina foi a pílula, meus senhores. O aborto só se tornou o dilema monstruoso a que chegou a partir do 25 de Abril. E muito por culpa de quem sabia, porque podia, ultrapassar obstáculos e não foi capaz de fazer a cama!
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