domingo, abril 09, 2006

JORNALAR

Quando eu era pequeno (de idade) matava-se o bicho pela manhã, no Cais do Sodré. Haveria, por certo, outros sítios onde fazê-lo, mas na minha pouca idade não os podia ver a todos. Mas sabia. Era gente de trabalho masculina de lide matinal, pela Ribeira (mercado abastecedor) ou junto à beira rio. Havia frio e humidade que o calor do trabalho só por si não eliminava. Era necessário aquecer a alma e o estômago. Nada que um bagaço (ou dois) não acalmasse. Era a isso que se referia o mata-bicho. Os quiosques no Cais do Sodré abriam pela madrugada, à espera da manhã e praticamente só vendiam ginjas e bagaços, além de um ou outro «copo de três». É verdade, confesso, que também se comercializava algum moderado «copo de dois», mas menos. O frio (e a sede) eram impedernidos.
Foi só quando cheguei a Luanda, à beira dos trintas, que dei pela expressão «mata-bicho» como pequeno almoço. E mais pelo verbalizar da expressão. Dizia-se «mata-bichar» no presente (do indicativo), no pretérito, mesmo que «mais-que-perfeito» e até no «condicional», tanto no singular como no plural.
E havia, logo de manhã os jornais. Os matutinos, bem entendido. Quando falo de matutinos vem-me à memória o João Rodrigues, desenhador fabuloso, que por acaso veio a ser ilustrador num pasquim que nem era matutino nem vespertino, ainda que fosse o diário da hora do almoço, era o «Diário Ilustrado» se a memória não me trai. Tinha dormido no quarto de alguém, à Praça do Chile e acordou ao som inexplicável de um monótono pregão: «Selos e cortiça, selos e cortiça, selos e cortiça». Que seria aquilo? Depois de levantar-se, arranjar-se e sair, deparou com um
ardina razoavelmente idoso, que vendia o «Século» e o «Notícias»!
(continua - há-de continuar, sDq)


ESTAMOS FALADOS
Era mesmo de jornais que eu ia botar paleio. É fácil, lá isso é, descortinar que os pasquins já não são o que eram, nem como eram. Pois! No tempo em que a Rádio não dava notícias, apesar de cobrar taxa (imaginem!) e nem se sonhava com a Televisão, os jornais eram uma coisa. Tinham o necessário. Era necessário dispor de uma oficina: os jornais tinham, cada um a sua!
Era premente uma distribuidora para distribuir. Os jornais tinham, cada um a sua. Se fosse preciso jornalistas também se arranjavam. Para director era preciso um doutor ou um engenheiro ou, até, um oficial militar. Conhecimento de Comunicação Social, que era como não se dizia, não era preciso, os senhores censores sabiam tudo, até colorir prosas com lapís de cor.
Esperava-se pelas notícias, a informação escorria lenta. Ninguém se suicidava: caía da janela à rua!Às vezes um burro ou até um cavalo de puxar carroça escorregava na calçada e amouchava. Era preciso um monte de gente barbada para ajudar a besta a erguer-se. E o eléctrico esperava. Bastava que se ajuntassem dois ou três eléctricos para haver matéria. Era melhor quando alguém se esquecia da beata acesa e o quarto ardia. Era tudo paulatino. Por essa altura andava de bibe e ia para a escola. O que eu lia era o «Mosquito», mas em casa, que sorte, havia sempre «O Século», ao fim da manhã e o «Popular», à noite, quando o meu pai vinha jantar.
Não se falava em casa da guerra, os jornais pouco escreviam. O meu pai de vez em quando ia assistir a sessões com documentários sobre a guerra, a convite da embaixada inglesa. Os alemães tinham um centro de propaganda a meio do Chiado e também passavam filmes e documentários, no «Ginásio», à Trindade, mas o meu pai não tinha convites. Era assim: os burgueses iam no «Ginásio»; os malteses numa sala algures entre Campo de Ourique e um cemitério, que havia por ali. Só para dizer que disto os jornais não botavam opinião e muito pouca notícia.
Foi assim. A partir de 43 já se podia dizer, mesmo no café, que o Hitler era um malandro do caraças. Mas que ele matasse judeus não se sabia. A aproximação oficiosa, mas quase oficial, às teses dos aliados implicava riscos. Era inevitável, mas assustava. Franco foi mais teimoso e o fim da guerra trouxe-lhe alguns amargos de boca. Desse ponto de vista, Salazar safou-se melhor.
As emissões em Onda Curta davam para ouvir a BBC e Fernando Peça, ele, sim, um enorme repórter, que descreveu muito da resistência londrina.
Entretanto, os jornais continuavam a sair, com tiragens elevadas. A história da guerra terminada ia-se refazendo, com grã cópia de pormenores. O futebol começava a ganhar espaço. No Porto três diários, «Jornal de Notícias», «Comério» e «Primeiro de Janeiro» barravam a entrada dos «mouros». Em Lisboa vendiam-se poucos dos jornais «lá de cima», mesmo assim mais do que o inverso, pela razão simples de Lisboa ser destino de nortenhos, que ,depois, fariam, em massa, agulha para a Europa!
A Emissora Nacional começou a fazer noticiários. Às treze e à meia-noite, se bem me lembro, que terminava o com o Hino. Por essa altura não era conveniente ouvir a Onda Curta. Já não havia guerra e a guerra, agora, era outra: nada de escutar a «rádio moscavide», como se dizia na gíria. Portugal «perdia» as colónias, passava a ter províncias ultramarinas. Os jornais davam-me muito jeito para saber o que ia nos cinemas e nunca se esqueciam de lembrar que era «visados pela Comissão de Censura», também os filmes eram!
Em todo o caso, podia-se saber do que se passava aí até às três da manhã. A essa hora encerrava a Censura e qualquer coisa mais que se publicasse era à responsabilidade do senhor director. O senhor director costumava avisar que não queria que se publicasse nada, depois dele sair.
Da oficina os jornais eram metidos em carros e ala que se faz tarde país fora. Em 75 ainda era assim e ainda se vendiam jornais.
Para mim era quase um vício. Continuei a comprar jornais, mas fui-me zangando. Quando eu era pequeno ainda havia «artistas» a vender a «banha da cobra» . Tinham que ter paleio para segurar uma roda de gente. Os jornais, agora, são assim: «Hoje é mais caro porque tem isto ou aquilo». Quando esta moda começou estava em Espanha. O «El paiz» juntava uma revista gráfica, mas vendida à parte. Quem quisesse só o jornal não pagava excesso. No Brasil, os quiosques dispunham de tambores vazios para despejar o «lixo», gratuito, intercalado no pasquim. Comecei por não comprar o matutino ao domingo, depois também ai sábado. Agora também à sexta e ainda há um à segunda. Eles é que sabem e como já quase não vou ao cinema não preciso de notícias requentadas. Por vezes amuo por outras razões. A exploração das deportações canadianas foi um bocado baixo.É verdade que Freitas Lopes, não é assim,gaita: Santana do Amaral, nem assim, bom o ainda ministro ajudou à festa com os seus, dele, disparates. Mas, depois, fez inversão e tratou das deportações de cá para lá de maneira irresponsável. Não se expulsa seja quem for por ser escuro ou claro, por ser do Leste ou do Brasil. Emigrantes temos sido nós todos os ainda menos; emigranes temos sido nós todos desde pequenos. Que me perdõe o poeta...

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