quinta-feira, fevereiro 23, 2006

A Loira da Rua 48 e D. Vitória

Ninguém sabia ao certo a idade da Dona Vitória. Era uma lenda da Rua 48. A propósito dos tempos idos, quando, a noite era desassossegada pelas botas da polícia, pelas batidas fortes na casa de algum vizinho considerado subversivo... Ou, em tempos mais recentes, quando automóveis enormes e pretos circulavam com as luzes apagadas rua acima, rua abaixo, à procura de indíciosde reuniões clandestinas...sempre se falava da D. Vitória.

Uma mulher intrépida, capaz de enfrentar todas as situações. Alta, desempenada, cabelos brancos, presos na nuca, de olhos brilhantes, sempre que passava a Rua 48 ficava em sentido: "bom dia...boa tarde, D. Vitória..."

Tinha sempre uma palavra especial para cada um, às vezes apenas um sorriso cúmplice, que lhe ficou dos tempos das grandes lutas, das manifestações cidade acima na reivindicação das grandes transformações sociais do país depois do 25 de Abril.
Era uma verdadeira líder. Foi ela que mobilizou sempre o povo da Rua para que as autoridades municipais atendessem as suas reivindicações.
Contava-se mesmo que os presidente de Câmara não dispensavam uma visita à casa da D. Vitória, depois de serem eleitos e mesmo antes das eleições. Conta-se também que alguns deles não conseguiram entrar, mesmo depois de eleitos.
Algumas das estórias de D. Vitória eram como que lendas que se contavam no Clube, nas tertúlias familiares ou mesmo de rua, daquelas que se montam em cima de um muro, numa esquina.
Uma destas, por exemplo, explicava com todas as letras como é que D. Vitória tinha escondido um dos netos debaixo das saias, quando a PIDE o foi procurar para o levar sabe-se lá para onde. Nunca o encontraram e levaram mesmo uma corrida quase a pontapé.
A Rua tinha um orgulho especial na sua heroína, na sua D. Vitória.
Ali estava ela, agora, rodeada de flores, com um sorriso de quem cumpriu a sua missão. Mãos colocadas sobre o peito, parecia, ainda que morta, continuar a olhar pelo seu povo, ali reunido para o último adeus.
Lá estava o sr. Cristo, impecável, no seu fato mais domingueiro, de cabelo castanho escuro impecavelmente penteado. Toda a gente se interrogava sobre o segredo daquela juventude, já que ele era dos que contava grande parte das estórias de D. Vitória de tempos idos e difíceis.
O povo também contava que ele, o sr. Cristo - nome com enormes responsabilidades - tinha pedido a D. Vitória para tomar conta, para...educar os seus filhos, mas que estes, preferiram, depois de alguns conselhos de D. Vitória, emigrar. Andam, agora lá pelos Estados Unidos ou pela França.
Hão-de saber, seguramente, ainda que mais tarde, do passamento de D. Vitória, um acontecimento que deixou a Rua 48 completamente entristecida. Sobretudo a Loira da Rua, aquela senhora de quem temos vindo a contar alguns episódios da sua vida, delas e de suas filhas adoptivas, Marilú e Francisquinha.
É que D. Vitória tinha feito dela como que a sua sucessora na liderança do povo daquela rua. Passavam horas à conversa : a D. Vitória sentada numa cadeira de balanço e com um enorme sorriso, a ouvir aquilo que considerava serem as aventuras da "sua menina".
Quando a Loira da Rua 48 entrou no salão paroquial, com as suas duas meninas, cada uma delas com um enorme ramo de rosas, umas brancas e outras amarelas, o povo olhou e grande parte das pessoas que ali estava deixou que lhe caissem algumas lágrimas pela face. No rosto da Loira, habitualmente risonho, feliz, como se a vida se desprendesse dos seus olhos, perpassava uma tristeza desmedida.
Com um enorme cuidado para não dar nas vistas, rosto inclinado para o chão, aproximou-se da urna de D. Vitória e pediu às suas meninas que colocassem junto de todos os outros ramos de flores as suas rosas.
Ela debruçou-se por sobre o corpo da defunta e tirou de dentro de um saco dois cravos vermelhos para colocar entre as mãos de D. Vitória. O salão paroquial como que estremeceu em uníssono por aquele gesto cheio de simbolismo. Estava consumada a transferência da liderança.
A velhinha que sempre diz mal da nora e passa a vida na loja do chinês a pedir ao chinês ainda mais pechinchas, inclinou a cabeça, o sr. alto, bem apessoado, que ao fim da tarde carrega sacos chiques para casa, a senhora que chega ao fim da tarde, meio a cambalear, os barrigudos que tomam conta do clube e vão bebendo cerveja enquanto não chegam os sócios para discutir a vida da instituição, até o sr. Cristo, todos eles inclinaram a cabeça em direcção à Loira da Rua 48.
A D. Ermelinda que só tinha sabido do infausto acontecimento naquela hora, quando entrou no salão paroquial percebeu que, para além da morte de D. Vitória, algo de muito importante se passava e ajoelhou.
O sr. Manuel encolheu a barriga e sorriu.
A Loira da Rua 48 sentou-se numa cadeira, bem à frente de todos, junto a D. Vitória, ficou recolhida por alguns instantes e depois, levantando-se, falou para toda a gente:
- " Morreu uma grande mulher, que sempre esteve connosco nas horas más e nos deixou viver as horas boas. É justo que lhe prestemos a nossa homenagem e saibamos ser dignos da sua história. O povo da Rua 48 não pode trair a sua memória".
Toda a gente assentou com a cabeça. Havia lágrimas nos olhos de alguns dos presentes.
Marilú e Francisquinha olhavam para a mãe admiradas. Nunca a tinha visto tão profundamente emocionada e agarraram-se ainda mais a ela.
Naquele dia começava a estória da liderança da Loira da Rua 48, que os poetas, mais tarde haveriam de cantar.

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